A fábrica de ’maçons’ e empregadas de limpeza

Não se sabe se o sonho americano alguma vez existiu, mas há muitos a viver o pesadelo luxemburguês. O Luxemburgo é um dos países europeus onde é mais difícil progredir na escala social. A escola devia servir de ascensor, mas este está encravado. As maiores vítimas são os imigrantes, a começar pelos portugueses.

Não foi trabalhar para as limpezas porque era um sonho de criança. “Não, não”, ri-se. Só tem o nono ano, feito no Luxemburgo, e sem qualificações profissionais não lhe restavam outras opções. “Em Portugal tinha vontade de ir para a escola, aqui nunca me deu vontade”.

Luísa ainda tem vestida a bata azul de uma das empresas luxemburguesas do setor, por baixo de um blusão de penas cor-de-rosa, depois de picar o ponto no escritório onde todos os dias limpa casas-de-banho e esfrega corredores até às nove da noite. Tem 22 anos e chegou ao Luxemburgo com dez, filha de um trabalhador da construção e de uma empregada de limpeza, como ela. A única diferença entre Luísa e a mãe é a cor da bata. “A dela é um azul mais escuro”, conta.

Vê-se que lhe custa lembrar-se do que queria ser quando era pequena, e só quando lhe perguntamos o que gostava de fazer é que lhe ocorre uma resposta. “Gostava de desenhar. Na escola, quando dava por mim estava a desenhar, nem prestava atenção às aulas. Talvez estilista?”, sugere, como quem pede confirmação de que é um sonho aceitável. “Às vezes ainda desenho”.

A família veio de Terras de Bouro para o Luxemburgo para melhorar a sua vida, mas para Luísa, o sonho converteu-se em pesadelo. Com dez anos, “não percebia nada” do que era dito na escola, em Esch-sur-Alzette. Puseram-na numa turma de acolhimento, reservada a imigrantes recém-chegados, com mais meia dúzia de meninos portugueses, cabo-verdianos e “uma jugoslava”. A ideia era que aprendessem francês de forma intensiva, uma das três línguas usadas na escola, para depois poderem integrar o ensino normal. Luísa passou lá três anos. Só ia para a turma normal duas horas por dia, “acompanhar o que entendia”. Que era muito pouco, até porque a deixavam de lado. “Mesmo os colegas portugueses não se queriam misturar com a turma de acolhimento, eles sentiam-se ’mais altos’”. Estar na turma de apoio era um atestado de menoridade.

Um dia chegou à turma normal e a sala estava vazia. “Tinham ido todos visitar um museu, eu nem sabia que havia um passeio. No dia seguinte um colega disse-me: ’A professora não te quis levar’, ela só levava os que falavam luxemburguês”. Luísa habituou-se a estar à parte. “Deixavam-me de lado: mesmo nos trabalhos de grupo, era sempre a última a ser escolhida, ficava para o fim”.

Um dia a professora teve uma fúria porque Luísa não tinha feito os trabalhos de casa. Tentou explicar à docente que não tinha percebido que havia trabalhos de casa, sem resultado. “Não consegui explicar. Ela pegou na minha mesa, encostou-me contra a parede e fiquei lá”. Peço-lhe que desenhe onde estava, para garantir que percebi bem o que acabou de me contar. Luísa traça rapidamente o esquema da sala de aula: à frente, o quadro negro; depois, um semi-círculo de mesas com os alunos da turma; ao fundo, de costas viradas para o quadro e para a professora, ficava Luísa, a olhar para a parede. Não se lembra quantos dias – semanas? – esteve assim, de cara virada para a parede. “Sei que no final do ano já estava no meu sítio habitual. Não sei quanto tempo estive assim, ao certo, não sei”. Tinha 11 anos. “Todos os dias pedia à minha mãe para voltar para Portugal”. Os outros alunos acharam “normal” que Luísa passasse as aulas ao fundo da sala, impedida de ver o quadro e de olhar para a professora. “Achavam que não me aplicava. Não percebiam que eu não percebia, que não era preguiça minha”. Para agravar o seu sentimento de fracasso, a professora apontava-lhe o exemplo de outro português que tinha conseguido integrar a turma normal. “Por que é que não és como ele?”. Luísa viu-o há pouco tempo, mas não pode dizer-se que a sorte dele tenha sido melhor que a dela. “Trabalha num supermercado”, conta.

Ao fim de três anos mandaram-na para o ensino modular, porque “não tinha notas para ir para um liceu mais alto”. Não conseguiu arranjar um patrão para fazer um estágio como cabeleireira, para tentar obter ao menos uma qualificação profissional. “Também não havia muitas opções para quem estava no modular, era isso ou vendas, e para os rapazes, ’maçon’ ou mecânico”. Ainda tentou ir para a Bélgica, tirar o curso de auxiliar de enfermagem, “para mudar fraldas a idosos”, mas “não estava habituada a estudar, era muita matéria, muitos exames, estava sempre a reprovar”. Rendeu-se às evidências: “Mal fiz 18 anos, fui trabalhar”.

Só um em cada dez portugueses chega ao clássico

O modular – rebatizado preparatório pelo atual governo – continua a ser o destino de 28% dos portugueses, segundo dados de 2017 do Ministério da Educação. É o grau mais baixo do ensino secundário, inferior até ao ensino técnico-profissional, para onde são enviadas 60% das crianças portuguesas. Ao mais elitista ensino secundário clássico, conhecido como a via rápida para a universidade, só chegam 10,9% dos portugueses.

É assim há anos. Para os filhos de imigrantes portugueses, o destino parece traçado. As proporções invertem-se no caso dos luxemburgueses: quase metade (49%) vão para o clássico, 41% para o técnico, e só 8,8% acabam no modular.

As histórias de sucesso de filhos de portugueses são a exceção que confirma a regra, num país que, segundo o Statec, “está na cauda do pelotão” em termos de mobilidade social. O estudo, que data de 2013, comparou a situação sócio-económica dos filhos com a dos pais, sem identificar a nacionalidade. O objetivo era verificar se as vantagens ou desvantagens sociais se transmitiam de uma geração à outra. Por vantagens entende-se o nível de instrução, a profissão exercida, a situação financeira e a saúde. As conclusões são sem apelo. No Luxemburgo, o nível de instrução dos pais determina em grande parte o futuro dos filhos. “Apesar de ter tendência a progredir, o nível de instrução dos filhos continua a ser um reflexo do dos pais”, escreve o Statec.

Os filhos de quem tem um baixo nível de instrução não vão muito além do patamar dos pais: “mais de metade (53%) não fez melhor, 36% concluíram o secundário e 11% atingiram o nível universitário”, segundo o Statec. No extremo oposto, 80% dos filhos de diplomados do ensino superior também obtêm um nível universitário. “Há por isso uma situação de statu quo”, conclui o Statec.

A maior dificuldade, para os filhos de pessoas com pouca instrução, é chegar ao santo Graal do ensino universitário: só 11,5% o consegue, o que faz do Grão-Ducado um dos países com menos mobilidade social dos 28 Estados-membros. O Luxemburgo é 18°, ficando mesmo atrás (embora pouco) de Portugal.

Com a instrução dos pais a perpetuar-se ou a aumentar pouco nas gerações seguintes, não surpreende que “a profissão dos pais tenda a reproduzir-se nos filhos”. Mais de metade dos filhos de trabalhadores manuais (57%) são também trabalhadores manuais, e só uma minoria chega a empregado administrativo (12%) ou quadro dirigente (14%). Em contrapartida, mais de metade (52%) dos filhos de diretores, profissionais intelectuais e cientistas exercem a mesma profissão ou semelhante.

A nacionalidade dos pais também determina o futuro dos filhos. Segundo o gabinete de estatísticas luxemburguês, “os filhos de nacionais parecem mais abastados do que os filhos de estrangeiros”. O risco de pobreza só ameaça seis por cento dos filhos de luxemburgueses, subindo para 13% no caso de nacionais da UE e 37% de fora da UE.

Portugueses são os mais prejudicados

Os números, no caso dos portugueses, podiam ainda ser piores, se houvesse dados discriminados em função da nacionalidade, defende o sociólogo francês Louis Chauvel. “Os dados que temos sobre a mobilidade social não permitem saber que as vítimas desta imobilidade social são em primeiro lugar, por exemplo, os portugueses”, aponta o professor catedrático da Universidade do Luxemburgo. O problema é que os dados usados a nível europeu, no inquérito EU-SILC do Eurostat, sobre o rendimento e as condições de vida, não permitem distinguir entre nacionalidades, agrupando na mesma categoria os imigrantes de origem europeia, sejam eles “filhos da classe trabalhadora ou da imigração dourada do Kirchberg” (funcionários europeus e do setor financeiro), segundo Chauvel.

Louis Chauvel é um dos “peixes graúdos” que a Universidade do Luxemburgo conseguiu recrutar para o seus quadros. Com dois livros publicados (“Les Classes moyennes à la dérive” e “La spirale du déclassement”), é um dos especialistas ouvidos em França sempre que se fala de mobilidade social. E não tem dúvidas de que, no Grão-Ducado, “nos últimos 30 anos se assiste a um aumento constante, embora moderado, das desigualdades económicas quanto ao rendimento”.

No Luxemburgo, com a redistribuição do Estado social e apoios generosos, podia pensar-se que o país é igualitário. É um erro. “A imobilidade social no Luxemburgo é muito forte, comparada com outros países de nível de desigualdade semelhante”, explica Chauvel. “A sociedade luxemburguesa é mais rígida”, sublinha.

Na educação, apesar das novas formas de ensino lançadas pelo governo, como as escolas internacionais, em que é possível escolher a língua de alfabetização – que ainda só abrangem algumas centenas de alunos –, os imigrantes são os sacrificados. “Ser suficientemente competitivo para chegar ao clássico ao mesmo nível que os luxemburgueses é um contrato dificilmente acessível para a geração cujos pais falam línguas latinas em casa”. O sociólogo levanta a questão: “Será que esta regra do jogo é justa para o modelo produtivo luxemburguês, ou esconde um preconceito de seleção deliberado?”.

Pode haver um efeito perverso na manutenção destas regras do jogo na acesso à escola e à Função Pública, defende. “Seria um grande risco para o país que as regras do jogo de seleção” continuassem a ser linguísticas, porque “não teremos a certeza de ter as melhores pessoas no melhor lugar”. E dá o exemplo de como nos EUA se recrutam génios da Matemática chineses que não falam uma palavra de inglês, enquanto que no Luxemburgo a medida das competências é falar luxemburguês, francês e alemão.

A fábrica de ’maçons’ e empregadas de limpeza
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